FELIPE

Felipe relembra o nascer do dia em Goiás. As crianças acordando para a aula de dona Tita-olho-roxo. Sete e meia o sino toca, todos correm fazendo fila para o hino nacional. Cada fila com dez crianças, os menores na frente, construindo uma estranha escada. Rosto levantado. Mão no peito e após o hino vem o pai nosso, cantado com voz de cotovia. De repente uma matraca se punha no meio do bando, no fim de tudo: – Bom dia Dona Tita! Gritava o coro.


Quase sempre a resposta era um muxoxo, um ranger de dentes apertado, sofrido, como canção de retirante, parecendo mais um adeus ao filho que vai a guerra ou que morreu.

Dona Tita-olho-roxo é o retrato do sofrimento. Padecia muito, era o que todos diziam. Havia uma aceitação social do fato.

As crianças não entendiam muito bem por que ela sofria. Só se recordam das palavras dos pais – não contraria Dona Tita, coitada! Seja obediente para dona Tita, tadinha! E as frases se repetiam, sempre mudando os adjetivos, coitada, desgraçada, infeliz...

Todos sabiam, ninguém negava, fazia parte dela, ás vezes faltavam adjetivos de infelicidade para descrevê-la.

Seu marido era homem ruim. Não trabalhava, só bebia. Havia dias em que ficava sem comer, então de uma hora para outra, sem que nenhuma perturbação rompesse o ar, ele simplesmente começava a quebrar tudo que via pela frente.

Era pouco o que possuía. Apenas uns pequenos bancos de madeira, uma pastileira e uma mesa, que bastava um solavanco para se espatifar, feito casca de ovo. Sempre depois de curado a carraspana ele consertava os móveis.

Na pequena casa o fogão à lenha imperava grandioso, sem nunca ter sido molestado, apesar dos chutes, nenhuma lasca saia dele. Parecia imultável, não sem razão, era feito do barro lá da Bica de Dona Enestina. Barro bom.

Então, a maior parte dos sopapos e pontapés restava mesmo para Dona Tita e as filhas. Já se perdeu a conta das vezes que ele correu atrás da filha mais velha, para matá-la ou mesmo fazer coisas que não se deve comentar.

Dona Tita-olho-roxo nunca pensou em larga o marido. Muitos diziam que era orgulho, pois ninguém da família dela aprovou aquele casamento, mas ela insistiu, chorou e até disse ao pai que se não matrimoniasse iria fugir, tanto fez que acabou por se casar.

Foi moça muito bonita, descreve os mais velhos. Agora, parece reduzida a trapos. Vestido velho, cabelo sempre a fugir do coque e sua mãe a dizer “Agüenta!”

A não ser pela família de Dona Tita, a cidade de Goiás abriga pessoas felizes, pacatas, sem grandes ambições ou sonhos e para conhecê-las basta dar uma volta na praça e logo vai ouvindo dos moradores a história completa. Quem mora. Quem tem filhos, netos, qual a origem, tudo em apenas uma tarde. De casa em casa, tomando um café aqui, comendo uma empada ali, e quando se nota somos gente de Goiás.

Comentários

  1. Infelizmente ainda há muitas Donas Tita por aí... silenciosamente desconhecidas!
    Parabéns pelo texto e muitos beijinhos.

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  2. Um gosto estar aqui a ler os seus posts.
    Bj.
    Irene Alves

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  3. E as Donas Titas vão povoando este UNIVERSO a cada dia. Muitas vezes escondidas pelo medo que só quem passa pela situação pode saber.
    As crianças nunca entendem mas bem sentem isso,como bem mostra teu texto.
    Gosto desta forma corriqueira e ao mesmo tempo delicada de se desenhar os fatos.
    Um grande abraço!!!

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